domingo, 4 de dezembro de 2011

Uma Bela Crônica para o Domingo!

O velho na praça

Sentou-se com esforço no banco da praça. Ajeitou-se demoradamente procurando uma posição melhor para as pernas trôpegas. Pernas desobedientes, quase centenárias. Ponta do guarda-chuva fincada no chão, apoiou as mãos no cabo e ergueu com dificuldade a cabeça. Queria ficar assim, altivo, firme, recebendo o sol de rijo na cara barbuda. Cara de Papai Noel. Sol gostoso, quente. Bom para afugentar friagem que se instala em osso velho.
Chuva ou sol, o guarda-chuva preto sempre acompanhando os passeios matinais. Guarda-chuva é menos senil que bengala. E serve bem como apoio. Corpo desobediente. Cansado. Amarrotado. O sol trabalhando energia na carne fria.
Suspirou inquieto. Procurou mais ar. Diabo de pulmão preguiçoso. Quanto ar dando sopa e ele enjeitando. Diabos! Tinha de aproveitar bem aqueles momentos. Encostar, largar o corpo. Mas qual! Andaram reformando a sua praça. Fizeram misérias. Deram fim naqueles bancos acolhedores, escondidos no meio dos pés de beijo. Banco pra, dois, onde ele e a finada esposa sentaram-se muitas vezes. Fizeram planos, trocaram carinhos. Sentaram-se apenas, no silêncio, sentindo a vida. Agora a moda é banco coletivo. Para caber mais gente. Está usando gente amontoada. Mas qual! Ninguém pra se sentar nos bancos. O assento é ruim mesmo, espanta qualquer um. A vida esquisita, corrida, seca, enxota o povo do jardim, desabriga o amor, aniquila o amor.
Que desejo de não mais voltar para o quartinho, na casa da filha. ”O seu cantinho” – diziam eles. Riu irônico… Nada mais tinha de seu. Nem vontade. Todo mundo a mandar, a decidir, a resolver por ele. A fala quase centenária morta no peito. Não se queixava, não! É difícil mesmo conversar com pessoas que escutam pouco. Dá nervoso. Pra quê? E depois, já tivera muita conversa com o mundo, queria agora falar pra si mesmo. E pra finada… Deus a tenha!
Uma bola tonta lhe bateu no braço. Atrás da bola, o moleque. Na boca do moleque, o nome feio gritado para o companheiro. Menino atrevido, sem educação! Nem uma desculpa. Devia estar pensando que ele era uma planta. Atrevido! Tivesse força puxava-lhe as orelhas, dos netos, dos bisnetos, de todo mundo. Era bom ter raiva. Estava vivo, com raiva, tomando sol.
Precisava ir… Já tardava. Hora de voltar para o seu cantinho. Riu irônico: “Seu cantinho”… Nada mais tinha de seu. Só o corpo cansado, amarrotado, custoso de carregar, querendo ficar mais leve, voar, voar… que nem o da finada. Deus a tenha! E aquele mundo encantado, aquela vida escondida bem dentro de sua cabeça, refúgio de pensamentos, de lembranças, de existências. Só ele sabia o caminho…
Custoso levantar. De pé, o olho miúdo piscando repetidamente querendo enxergar melhor, o cabo do guarda chuva apertado na mão… Respirou fundo. Queria guardar a volúpia do ar brincando em volta.
Relutou em começar a caminhada. Medo de não voltar mais à praça. Precisava ficar firme, fazer força para não parecer muito fraco. Andavam falando em proibir o passeio matinal. Velho demais para andar sozinho, o velho sempre sozinho.
Diabos!
Como um sonâmbulo entraria na casa. Sentar-se-ia num canto. A agitação, o vozerio, o latir dos cachorros, a água saindo das torneiras, o barulho dos pratos, o sobe-e-desce escadas, o canto da cozinheira, o cheiro da comida, o toque da campainha, telefone sem parar, barulho de carro chegando, alguém lhe perguntando como ia sem esperar resposta, o olho fechando devagarinho, a fuga para o mundo encantado, seu mundo, bem escondido, do qual só ele sabia o caminho, só ele…
Marília Alves Cunha
Educadora
Uberlândia (MG)
mariliacunha16@hotmail.com

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